Vitalidade moderna de Dionísio

William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Nymphs_and_Satyr_(1873)Crivado de polêmicas, admiro os escritos de Nietzsche. O pensador viveu na segunda metade do século 19, uma época de crise da moral e do cristianismo na Europa. É sem dúvidas, um gênio de sua época. Autor de escritos poderosos, enaltecedores da vida, da força e do humano, revolucionário à frente da renovação moral, da transvalorização de todos os valores, do supra-homem, de seu der wille zur macht, do combate ao Niilismo… o autor causa questionamento em uma leitura menos rigorosa, talvez literária, sobre como um homem de escritos tão pungentes, pôde morrer sozinho, louco, desiludido afetivamente e chorando.

Sua visão da humanidade era clara e implacável e talvez tenha sido vítima do que sua filosofia procurou precaver. Humano, demasiado humano. Então, me lembro de uma passagem de Kundera em “A insustentável leveza do ser”, em que menciona um momento que Nietzsche saiu de um café e presenciou um cavalo sendo açoitado pelo condutor de sua charrete e, em prantos, abraça o animal, sentindo profundamente sua dor e a estupidez humana.

Claro que tudo que admiro no autor é muito mais vasto, porém, considerando estes breves aspectos, resolvi escrever este post, frente a um “paradoxo”: Nietzsche, o autor moderno que tanto valorizou o instinto helênico sob a expressão dionisíaca na ebriedade, era abstêmio e apologista do não consumo de bebidas espirituosas!

Droga, o cara que eleva o espírito de seus leitores era fraco pra bebidas. Não agüentava nem um copo de vinho! Mas como esse mesmo cara enaltecia Dionísio e sua embriaguez?

Nietzsche encontrou nos pré-socráticos e nas formas artísticas, como a tragédia, o veio da realidade, a unidade da vida e morte, a chave que abre o caminho essencial do mundo, em oposição à razão socrática, à metafísica de Sócrates, o “homem-teórico”, que julgou serem aquelas manifestações algo “irracional”. Dionísio com sua embriaguez é para Nietzsche a forma mais direta de expressão da realidade, pois toca o homem, a natureza, os instintos e se dá em superabundante vitalidade, dado à sua potencialidade orgástica. A embriaguez supera os limites da frígida racionalidade.

Ao mesmo tempo, Nietzsche adverte que a embriaguez entendida como uso freqüente do álcool é uma forma de degenerescência. Esta embriaguez arrefece a vitalidade. Ele conecta esta embriaguez ao uso exagerado e freqüente da cerveja pelos alemães, colocando este uso e o cristianismo como as duas drogas da Europa. Vale notar que o autor coloca este uso da cerveja como contraposto ao uso dionisíaco do vinho.

Então, a que se deve o elogio de Nietzsche à embriaguez dionisíaca? O pensador entendia que a embriaguez era a condição fisiológica que move a ação e contemplação artística. Todo tipo de embriaguez tem potência artística, acima de todas, a embriaguez da excitação sexual. Assim também, a embriaguez da festa, dos atos extremos, da luta, da primavera, a embriaguez da vontade, por fim. O essencial é seu sentimento de força e plenitude.

Chego à conclusão, portanto, que, de tudo o que me admira nos escritos de Nietsche, o cerne está neste querer-viver, nesta vitalidade arrebatadora, neste vôo, neste lançamento sobre todas as capacidades humanas (que vai contra o modo de entendimento racional) que tem como exemplo a tradição grega do culto de Dionísio e sua exaltação dos instintos, sempre acompanhado do vinho.